Sem categoriaA Aquacultura e a Sustentabilidade

A Aquacultura e a Sustentabilidade

No contexto atual de guerra, pós-pandemia, alterações climáticas, incerteza socioeconómica e financeira e utilização de recursos naturais finitos, o desafio global de alimentar mais de 9 mil milhões de pessoas até 2050 transformou-se num complexo objetivo da ONU, que coloca a aquacultura como a produção animal mais eficiente e mais viável para fazer frente aos desafios de nutrição e segurança alimentar.

Em 1987, a Comissão Brundtland das Nações Unidas definiu a sustentabilidade como “satisfação de necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades”1. No entanto, estas necessidades devem englobar três pilares fundamentais para o bem-estar dos indivíduos e das sociedades: desenvolvimento económico, inclusão social e proteção ambiental.

Desta forma a aquacultura não deve apenas intensificar a sua produção para um crescimento interino e lucro económico individual, deve proporcionar um crescimento distribuído e equitativo, justo, de forma a criar mais e melhores oportunidades de emprego e inclusão social e garantindo uma gestão integrada dos recursos naturais e ecossistemas.

Como pode a Aquacultura ser sustentável nesses três pilares?
Pilares social e económico

A aquacultura tem-se revelado uma força económica revitalizadora em muitas comunidades costeiras a nível mundial, sobretudo em áreas onde o desenvolvimento económico sustentável é difícil de implementar.

De acordo com o relatório da FAO, 20,7 milhões de pessoas estão envolvidas só no setor primário da produção aquícola, dos quais 28% são mulheres. No entanto, o relatório demonstra que os pequenos produtores ainda são vulneráveis, com condições de trabalho por vezes precárias2. Torna-se então urgente a construção de um setor forte e bem regulamentado a nível mundial, que permita mais e melhores condições de trabalho, a nível local. De facto, o acesso a alimentos seguros, de qualidade, completos a nível nutricional e a preços acessíveis é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e é possível através da aquacultura. Poder produzir localmente proteína animal, como o pescado, é fundamental para a saúde humana e permite às comunidades que produzem esse alimento melhorar a capacidade de processamento primário e assegurar produtos frescos e de alta qualidade.

Um setor aquícola desenvolvido e forte promove outras oportunidades de emprego além da produção: no processamento e transformação de pescado em produtos de valor acrescentado (conservas e congelados), no comércio, bem como indústrias de fabrico de rações e equipamentos, entre outros. Além disso, a aquacultura gera emprego durante todo o ano, o que se torna num dado muito relevante, por exemplo, no Algarve, região que alberga o maior número de aquaculturas do país e onde a maioria do emprego é gerado pelo turismo e, portanto, de cariz sazonal. De notar que em Portugal, em 2020, a aquacultura registou 1162 trabalhadores ao seu serviço, em 458 empresas, e que alimentou, junto com a pesca, setores como a preparação e conserva de pescado, rações, comércio de venda e retalho – que empregaram, em conjunto, cerca de 16 500 trabalhadores e geraram um volume de negócios de cerca de 2 milhões e 700 mil euros3.

O crescimento da aquacultura será no futuro obtido através do aumento das explorações, quer em terra quer no mar, e da intensificação sustentável dos processos de cultivo, tendo como base o desenvolvimento e modernização tecnológicos. Em países mais industrializados, o sistema tecnológico e científico tornou-se essencial para o avanço da indústria.

Os incentivos e apoios governamentais foram e são essenciais, gerando conhecimento que foi e continua a ser levado para a indústria. Por sua vez, a indústria também investe em inovação, permitindo que, ao longo de toda a fileira do pescado, se criem empresas tecnológicas e inovadoras, que ajudam a melhorar a produtividade e eficiência de todo o setor e indústrias adjacentes. Estas sinergias geram mais emprego, altamente qualificado, melhorando o nível de vida das comunidades e permitindo ao mesmo tempo o desenvolvimento sustentado do setor.

Por outro lado, algumas vezes surgem conflitos pelo uso da terra e da água nas comunidades próximas às explorações aquícolas. Aqui, o diálogo, a literacia e uma abordagem inclusiva e comunitária pode ajudar a superar estas questões, mostrando, por exemplo, que os serviços ecossistémicos gerados pelas aquaculturas podem promover o aumento de peixe na aérea, proteger as zonas costeiras da subida do nível do mar, ou até melhorar a biodiversidade do ambiente envolvente, facilitando a aceitação social e criando sinergias com outras atividades, tais como o turismo, gerando capacidade de as comunidades crescerem economicamente a longo prazo.

Pilar Ambiental

A aquacultura é a atividade do setor de produção animal com maior crescimento, e tudo aponta para que contribua a nível global com mais de 50% dos alimentos produzidos para consumo humano2.

Para que tal suceda, prevê-se a intensificação da produção aquícola. No entanto, a rápida expansão do setor tem sido associada a muitas preocupações de sustentabilidade ambiental. A atividade aquícola está totalmente dependente das condições naturais do meio, e pode ser afetada por alterações ambientais resultantes de atividades industriais e antropogénicas, como poluição de explorações de petróleo, gás e outros minerais, agricultura e pecuária.

No entanto, a própria aquacultura se mal gerida pode afetar o meio ambiente através do aumento dos produtos de excreção das espécies produzidas. A intensificação da produção aquícola exige a utilização de maiores quantidades de água, provocando maior volume de água residual rejeitada, fomentando conflitos com outros utilizadores de recursos hídricos4. Existem ainda potenciais impactos como a eutrofização, impactos tóxicos e ecotóxicos, recurso a antibióticos, utilização de terra e água necessárias para a produção de rações, diminuição da biodiversidade, introdução de espécies não indígenas na natureza, propagação/amplificação de parasitas e doenças, poluição genética, dependência da pesca de captura5. Torna-se, portanto, essencial que a aquacultura se desenvolva de forma sustentável, com respeito pelo ambiente. A dimensão do impacto ambiental depende das espécies, do método de cultivo, da densidade da produção, da alimentação, das condições geológicas do local e da gestão da produção – estando esta associada às leis e regulamentos que variam da UE para os demais países.

O sucesso de qualquer atividade aquícola tem como base a regulamentação para as boas práticas de gestão, como a otimização do maneio, o investimento na prevenção de doenças, e.g., como a produção de vacinas, pré-bióticos que melhoram o sistema imunitário dos peixes e ajudam a diminuir o aparecimento de doenças, etc… Ainda assim, muitas doenças não existem vacinas, sendo necessário recorrer a fármacos. Estes geram alguma preocupação devido ao impacto que podem ter no meio ambiente3.

No entanto, em Portugal e na UE, a sua utilização é diminuta e realizada apenas quando estritamente necessário. Além disso as águas residuais resultantes das produções aquícolas são cada vez mais estudadas para serem tratadas de forma natural (biorremediação) e reaproveitadas com outros fins. A aquacultura é ainda considerada uma prática em equilíbrio com o ambiente, em especial quando a sua produção se baseia em sistemas integrados com outras formas de produção (IMTA) ou quando se produzem bivalves – considerados fonte incrivelmente sustentável de proteína, são fixadores de carbono, removem fósforo e nitrogénio da água, e não utilizam água doce nem ocupam espaço em terra6.

Atualmente, os estudos de impacto ambiental são obrigatórios para a obtenção de licenças de produção em aquacultura que, aliados ao aumento das restrições, fez com que houvesse uma aposta na investigação, desenvolvendo-se técnicas de aumento de produção e rentabilidade que, simultaneamente, reduzem ou anulam o impacto ambiental. De notar que em 2021, a Autoridade Norueguesa para a Segurança Alimentar (IMR) analisou 14135 peixes de aquacultura para se auferir a existência de substâncias ilegais e indesejadas, e concluiu que os níveis de produtos farmacêuticos e de toxinas ambientais estão abaixo do valor-limite definido pela EU como sendo seguro para consumo humano.

A utilização de farinha e óleo de peixe nas dietas provenientes de pescas de captura é uma das maiores responsáveis pela ideia de que na aquacultura não é sustentável. A aplicação do conceito “FIFO – fish in, fish out” (quantidade de peixes necessários (fish in) para produzir 1 peixe em aquacultura (fish out)), embora considerado pouco preciso por cientistas e investigadores da área, é amplamente utilizado pelo público e mass media de forma negativa. A ideia de que se está a “alimentar peixe com peixe”, que pode servir para a alimentação humana, levou a um grande investimento do setor para que se encontrassem alternativas à farinha e óleo de peixe provenientes da pesca7. Assim, nas últimas décadas especialistas em nutrição animal formularam dietas para aquacultura que visam à redução da dependência dos recursos marinhos, que são limitados, utilizando, por exemplo, ingredientes à base de plantas e coprodutos da pesca e da aquacultura e coprodutos da produção de animais terrestres que, juntamente com as proteínas de insetos, têm maior potencial para fornecer as proteínas requeridas pelos peixes. Os coprodutos da indústria alimentar possuem também um grande potencial através da sua biotransformação e/ou bioconversão em matérias-primas, enquanto a biomassa microbiana, apesar do seu potencial, a sua produção tem elevados custos, as de microalgas tem limitações de escalabilidade e as macroalgas limitações proteicas8. De salientar que em 2016 foram utilizadas 1.627.478 toneladas de ingredientes para rações. Nestas, os ingredientes marinhos constituíram 405.921 toneladas (25%), enquanto 1.156.135 toneladas (71%) eram de origem vegetal e 65.422 toneladas (4%) eram outros ingredientes9.

Fora da União Europeia as leis e regulamentações são diferentes e podem existir modelos de produção potencialmente poluidores e destrutivos do ambiente aquático – como é o caso da produção de camarão, em alguns países. Daí ser crucial saber-se a origem do pescado que comemos. Um dos pontos cruciais nesta matéria da sustentabilidade prende-se com a certificação dos produtos do mar.

Atualmente existem quatro regimes responsáveis pela maior parte da produção certificada em aquacultura: Aquaculture Stewardship Council (ASC), Global Aquaculture Alliance Best Aquaculture Practice (GAA BAP), Global G.A.P. (GG), and Friend of the Sea (FoS). Cada norma de certificação tem uma lista de indicadores e requisitos correspondentes, que se destinam a garantir práticas responsáveis de sustentabilidade (por exemplo, ambiental, social, origem e tipo de ingredientes utilizados nas dietas, etc.).

Muito embora estes esquemas tenham sido alvo de críticas em filmes como Seaspiracy ou artigos Jornalísticos (ver Público), e estando conscientes de que possam necessitar de alguns ajustes, vale a pena ter em conta estas certificações quando se fazem escolhas na banca do supermercado ou na praça. Estes selos e certificações demonstram que existe auditoria às produções aquícolas e que as mesmas têm de conseguir corresponder a uma série de requisitos relevantes. Além disso, certificações como estas também podem ser uma proteção contra a fraude, uma questão capital na indústria do pescado. É, no entanto, de salientar que, para pequenas empresas (como é o caso de muitas produções em Portugal) pode ser incomportável incorporar sistemas de certificação nos seus negócios. Embora a maioria das críticas se dirijam à corrupção para obtenção de certificados em certos países, acreditamos que estes certificados são facilitadores fundamentais para a mudança comportamental na indústria e no consumo.

Além destes certificados existem aplicações de telemóvel (apps) que nos guiam na escolha do pescado e que podem ajudar o consumidor a determinar se o peixe que pretende comprar é, ou não, uma escolha sustentável. Duas das mais conhecidas são a Good Fish Guide (do Reino Unido, da Marine Conservation Society/MCS) e a outra é a Seafood Wach do Monterey Bay Aquarium, nos EUA. Estas apps funcionam, quer para a pesca, quer para a aquacultura, e operam num sistema de semáforos, baseado em regulamentos locais, na forma como a captura das pescas e das explorações aquícolas são geridas e na saúde dos recursos hídricos e costeiros, determinando se o consumo de determinada espécie é ou não sustentável. Mesmo para o bom funcionamento destas apps, necessitamos, contudo, saber a origem do pescado que estamos a comprar no momento, e isso nem sempre é possível. Infelizmente, em muitas peixarias e supermercados os rótulos não estão legíveis, ou estão trocados ou são inexistentes, para não falar nos restaurantes em que não temos acesso à origem do pescado servido. A solução é perguntar, sempre. Devemos sempre perguntar qual a origem do pescado que estamos a comprar ou que vamos consumir. Se não estiver identificada a origem ou se não nos souberem responder, não o devemos consumir ou comprar.

Em suma, se feita de forma correta, a aquacultura pode ser sustentável a nível socioeconómico e ambiental. Devemos sempre dar preferência ao pescado nacional, que é bem gerido e aplica as regras e regulamentações europeias. Assim, ao dar-se preferência ao que é nosso, está-se a consumir pescado de excelente qualidade e com baixo impacto ambiental. Estamos também a ajudar a economia local e nacional, a potenciar melhores condições laborais e a contribuir para a diminuição da importação de pescado oriundo de países cuja produção não se rege pelas mesmas regras e valores que a produção animal nacional e da UE.

REFERÊNCIAS

  1. United Nations Brundtland Commission https://www.un.org/en/academic-impact/sustainability
  • FAO. 2022. The State of World Fisheries and Aquaculture 2022. Towards Blue Transformation. Rome, FAO. https://doi.org/10.4060/cc0461en
  • Relatório de Monitorização da Estratégia Nacional para o Mar 2021-2030 (DGPM 2022) https://www.dgpm.mm.gov.pt/post/2022-oe2
  • Introdução à Aquacultura. Autores: Maria Teresa Dinis e Rui Miranda Rocha. Editora: LIDEL; Edição: 2021ISBN: 978-989-752-599-5
  • Henriksson PJ, Guinée JB, Kleijn R, de Snoo GR. Life cycle assessment of aquaculture systems-a review of methodologies. Int J Life Cycle Assess. 2012;17(3):304-313. doi: 10.1007/s11367-011-0369-4. Epub 2011 Dec 24. PMID: 26069396; PMCID: PMC4456070.
  • Alice R Jones, Heidi K Alleway, Dominic McAfee, Patrick Reis-Santos, Seth J Theuerkauf, Robert C Jones, Climate-Friendly Seafood: The Potential for Emissions Reduction and Carbon Capture in Marine Aquaculture, BioScience, Volume 72, Issue 2, February 2022, Pages 123–143, https://doi.org/10.1093/biosci/biab126
  • Turchini, G. M., Trushenski, J. T., & Glencross, B. D. (2018). Thoughts for the future of aquaculture nutrition: realigning perspectives to reflect contemporary issues related to judicious use of marine resources in aquafeeds. North American Journal of Aquaculture. doi:10.1002/naaq.10067
  • Katheline Hua, Jennifer M. Cobcroft, Andrew Cole, Kelly Condon, Dean R. Jerry, Arnold Mangott, Christina Praeger, Matthew J. Vucko, Chaoshu Zeng, Kyall Zenger, Jan M. Strugnell, The Future of Aquatic Protein: Implications for Protein Sources in Aquaculture Diets, One Earth, Volume 1, Issue 3, 2019, Pages 316-329, ISSN 2590-3322, https://doi.org/10.1016/j.oneear.2019.10.018.
  • Aas, Turid Synnøve; Ytrestøyl, Trine; Åsgård, Torbjørn Einar, Resource utilization of Norwegian salmon farming in 2016 – Professional final report, Publisher Nofima AS.
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